quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

O mundo é um moinho

Ainda era cedo. Mal começara a conhecer a vida. Tinha 18 anos, muitos sonhos, desejos, projetos e vontade de sair, de buscar, de ir além. Sua mãe era professora e seu pai fazia bicos para ajudar com alguma despesa para casa. Mas as despesas que fazia nos bares da vida era sempre maior e levava tudo do pouco que conseguia. Sobrava para mãe, então, o prover da casa. Era uma mulher dura, calejada pelo tempo, com marcas severas que a vida deixou, tinha um ar pesado, uma obrigação, um porte militar, que parecia uma espécie de defesa. Enquanto o pai tinha um ar mais solto, um jeito despojado de ver a vida, de consumir arte, de criar, de um porte leve,  por vezes irresponsável. A menina não entendia ainda como estavam juntos aquele tempo todo, com toda essa incongruência, essa contradição e esse jeito totalmente díspares de enxergar a vida.

A adolescência a marcara de forma especial. Estava em cima de um muro, sem saber para que lado pender: o rigor, o dinheiro e a razão ou a loucura, a criatividade e o desprendimento. Procurava um ponto de equilíbrio, mas ele nunca vinha. Tinha um jeito diferente de ser, era passional ao extremo, não conseguia racionalizar nem mesmo uma equação matemática. Preferia as matérias subjetivas, o particular no lugar do universal. Lia livros que seus colegas sequer imaginavam ter nas mãos, buscava músicas novas, sons diferentes. Mas também gostava da cultura de massa, do que era comum, dos problemas sobre matrizes e determinantes. Era realmente uma pessoa de muitos lados, muitas faces, muitas possibilidades. 

Preferiu, então, sair do muro e cair na vida. Anunciou (com a licença da rima), a hora da partida. Não sabia que rumo ia tomar, mas tinha certeza de que ali não era mais lugar para sua condição ambígua, seu desejo de ganhar o mundo, de ir além do que os limites a colocavam. A mãe, com seu ar severo, jogou na cara todo o sacrifício que fizera esse tempo todo, lembrou cada centavo que investiu em sua educação, cada hora de trabalho que suou em prol de seu bem estar. Seu pai, com sua insanidade latente, nada disse. Não lhe lembrou dos passeios, dos álbuns de figurinhas, dos discos de vinil, da rotina de jogar o cobertor sobre a menina, de pegar seu garfo favorito. Apenas lhe disse uma frase, que a princípio não teve sentido, mas adquirira um certo tom profético:

- "Preste atenção! O mundo é um moinho!"

Ela apenas sorriu, como sempre fazia dele, ignorou a rabugice da mãe e foi para vida. Era bonita, com os cabelos longos e lisos, um sorriso bem feito por aparelhos ortodônticos, um perfil esguio e de aspecto saudável. A princípio foi fácil. Onde chegava, despertava o interesse das pessoas, conseguira um bom emprego, que lhe valia o sustento. Mas em pouco tempo não seria mais o que era. Sua necessidade de dinheiro a aproximaram do estilo de vida da mãe, e  afastaram do jeito desprendido de levar a vida, e tudo agora virara obrigação. Tinha que dar conta da casa, das contas, da limpeza, da comida e não sobrava tempo para ler seus livros, ouvir suas músicas. Tornou-se uma pessoa entediada, sem graça, sem vida. Não sabia mais quem era, onde estava sua identidade, quais eram os seus gostos e seus desejos. 

Foi quando enlouqueceu! Não sabia mais sustentar sua vida de brinquedo,de um ar que não era dela, e decidiu ser livre. Vivia nos botecos da cidade, à base de cachaça pura e petiscos gordurosos. Já não era mais esguia e seus dentes começaram a trazer as marcas do desleixo. Em cada esquina, caía um pouco a sua vida. Em cada uma delas, achava um "amor de Saquarema", tão duradouro quanto o valor que se dispunham a pagar. Vieram muitos homens, de todos os jeitos e raças, de diversos credos e opções políticas. Eram vários, mas tinham em comum a capacidade de fazê-la cega de amor, de desejo, pois já não distinguia o que era certo ou errado. Era como uma fêmea no cio, um animal movido à emoção e instinto. De cada um deles, herdara apenas o cinismo.

Era outra mulher! Não tinha mais os sonhos da infância. Talvez nem tivesse sonhos. Já não conseguia mais distinguir o que era sonho e realidade. Vivia num mundo onírico, via figuras invisíveis, conversava com seus poetas e compositores favoritos, como se eles ali diante dela estivessem. Já não tinha mais casa, não tinha bens, não tinha nada. Nem mesmo a sua beleza e seu sorriso, sua inteligência e sua razão. Já não lia mais, não ouvia músicas, vivia nos becos, nos bares, na rua, no relento. 

Em um sábado qualquer, estava à porta de um boteco quando o dono do mesmo ligou sua vitrola. Ela parou ali, numa tentativa de lembrar-se de quem tinha sido, do que era e pra onde iria. A agulha ia passando sobre o disco em movimento, quando fez soar a frase de seu pai, numa música da qual ela já havia esquecido. Num momento de lucidez, lembrou-se de sua casa, de sua mãe e seu pai, do jeito que herdara de cada um e que agora havia desaparecido. Ela era um monte de nada cheio de lembranças. Lembrou-se da sua mãe, de tudo de material que ela havia lhe provido, da sua casa, sua cama, sua estante de livros e seu guarda-roupas. Lembrou-se de seu pai, ao violão, tocando aquela canção de maneira que a fazia rir, pois quando errava alguma nota, repetia insistentemente a frase, como um disco riscado. Lembrou-se das escolhas que fizera, do mundo que encontrara, que destruiu seus sonhos e reduziu suas ilusões.

Quando saiu de casa, queria apenas seu lugar na vida, queria apenas um jeito de ser diferente de sua mãe, e conseguir sorrir das situações da vida, descontrair um pouco, mostrar ao mundo sua gargalhada. Só queria apenas um jeito de ser diferente de seu pai, de ter um pouco mais de responsabilidade, de capacidade de pensar, de poupar, de gerir. Queria ser um misto de razão e emoção. Queria ser em cima do muro pro resto da vida, descendo para o lado que necessitasse de vez em quando. Queria equilibrar o diabo e o anjo de sua consciência. Mas não sabia fazer escolhas. Tinha o dedo podre! Na hora de ser racional, entregava-se às paixões. Na hora de emocionar-se, endurecia feito gelo. 

Tentou fazer um caminho de retorno. Conseguiu um novo emprego, com baixos proventos, suficientes para lhe pagar o aluguel de um quartinho de pensão. Quando deu por si, o tempo tinha passado sem que ao menos tivesse cursado uma faculdade, sem que ao menos tivesse aprendido a tocar na noite e ganhar algum dinheiro com isso. Não tinha sido nada, não tinha construído nada, não tinha amado o suficiente, não tinha prendido ninguém. Percebeu como fora egoísta consigo mesma. Estava se refazendo, sua pele estava limpa novamente, seus dentes foram tratados pelo patrão, seus cabelos eram vivos novamente. Sua razão recobrara-se, e quando viu, estava à beira de um abismo. Abismo que cavara com seus pés!


segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Aprender

E com o tempo a gente vai percebendo que a chuva passou e ainda estamos de pé, apesar dos estragos. Que o sol sempre nasce depois da madrugada fria, e que o tempo não para e a gente não morre de amor. Que a cicatriz vai ficar ali, em alguns dias vai doer, mas a cabeça permanece erguida e o sorriso permanece nos lábios. E vamos contabilizando as perdas e observando que às vezes muitos ganhos estão ali disfarçados. Vamos entendendo que não perdemos muito e sim conquistamos a chance de ser mais e melhor. A gente percebe que tem o direito de estar magoado e mordido, que tem o direito de ser egoísta e de ter sentimentos de vingança, e isso não é feio, é apenas uma espécie de defesa. A gente vê que psicólogo não é para maluco, e sim para evitar que abramos a nossa porta da loucura, pois todos a possuem. E que a abrirmos um pouco, de vez em quando, é uma maneira de escapar dos dias chatos de total lucidez. A gente percebe que estamos amarrados em camisas de força invisíveis e que temos que nos permitir livrar delas. A gente vai encontrando histórias bacanas pra ler, como a do "Urso e a Panela", e vai vendo que muitas vezes, estamos nos queimando sem nem nos dar conta e ainda achamos que isso é legal. A gente vê que oração, bons livros e boa música são o melhores remédios pra dor, que vão acalmando o coração e colocando as coisas nos eixos, ainda que em meio a lágrimas. E vai vendo que é capaz de sentir de novo. Que é capaz de amar de novo. Que é capaz que acreditar que pra todo fim há um recomeço. E há. Sem sombra de dúvidas!
A gente sente de novo a vontade de olhar um perfil de rede social com afeto, de estar ao lado daquela pessoa, ouvir as mesmas músicas, partilhar poemas, histórias. A gente tem o desejo de repetir os beijos, os desejos, os amassos. Fica ansioso aguardando um menor sinal de correspondência. E ele vem, nem que seja nas entrelinhas. A gente tem vontade de apenas estar perto, ouvir a voz, mesmo que ela nos desfie os nossos defeitos na cara, mesmo que ela seja de uma pessoa rabugenta e racional por aparência, mas que no fundo, bem no fundo mesmo, tem os mesmos sentimentos de mágoa e mordida. A gente tem vontade de entrar e sair, partir e chegar, de sorrir junto de novo, de fazer careta, de zoar com a cara , de ironizar, de esconder segredos bobos, de preparar surpresas, de dividir, de somar e não sumir da vida do outro. Tem desejo até mesmo de se permitir sofrer de novo, de outra maneira, porque agora já sabe lidar com a dor. Não tem medo de se jogar, de mergulhar fundo, pois se afogando a gente aprendeu a nadar. E porque aprendemos que se há um órgão que se regenera no ser humano, esse é o coração! Que a cada dia, a cada experiência, a cada negativa, a cada parada, vai se fazendo forte, vai se fazendo novo, vai se fazendo, se cerzindo, se emendando, cada dia mais, cada dia novo, cada dia mais novo! E a gente percebe que só se é feliz por completo quando já provou alguma dor. E descobre que "só quem já perdeu na vida sabe o que é ganhar, porque encontrou na derrota algum motivo pra lutar. E assim, viu no outono a primavera. Descobriu que é no conflito que a vida faz nascer!"


sábado, 15 de dezembro de 2012

Poema concreto ou Avesso

A vida ao avesso,
O abcesso, o inverso,
O pregresso, o reverso,
A dor, confesso,
Sem retrocesso,
Caminho de sucesso,
O que vem está expresso,
Está registrado!
Maktub!
Youtube
Está gravado
Está marcado!
Irriquieto
Não é terceto,
Nem sequer é soneto!
Poema concreto

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Contrários

Na escola da vida,
A gente vai aprendendo
Que antítese é bem mais que jogo de palavras.
É jogo de contradições,
De dois lados da moeda,
Da triste condição,
De ser um e ser contrário de um
De ser sóbrio, mas permitir inebriar-se
De ser são e louco,
Muito e pouco
Ser crepúsculo e ocaso
Ser vazio, cheio, fundo e raso.

É tanta oposição,
Que nem sempre é atração!
Vejo como indecisão, contradição,
De quem sempre disse não,
Agora vai na contra-mão.
Do amor, da história, da memória.
De ser agora aquilo que nunca fora.
De transformar a repulsa em escolha.

O que era doce, de repente fica amargo.
O que era certo, tornou-se o mais errado.
Não tinha remédio, agora está remediado.
O que era festa, virou entediado.
Era riso, virou pranto,
Ou pelo menos amarelou aquele encanto.
O que era barato, agora virou caro.
Era pleno, está raro.
Era encanto, agora, precário.
Era resposta, agora, questionário.

É confuso, é difuso
É imaginário.
Qual das facetas é a real
Em meio a tantos contrários?
O gordo ou o magro?
O egoísta ou o perdulário?
O bravo ou o calmo?
O sorridente ou o plácido?
O bêbado ou o ébrio?
O macumbeiro ou o evangélico?
O que se aproxima ou o que dista?
A verdade ou a mentira?
O amor ou a repentina ira?

Antítese é bem mais que jogo de palavras.