quarta-feira, 3 de junho de 2020

Favor comparecer à gerência

     Essa é uma história de um tempo em que não havia balanças nos caixas de supermercado. Acho que não havia ainda código de barras. Uma história do tempo de minha avó.

     O mês era maio. O comércio estava cheio de corações na vitrine, com as três letras que amamos homenagear todo segundo domingo. Na pequena cidade, só havia um grande mercado. E é lá que se passa nossa narrativa .

     Irene entrou no mercado, com sua bolsinha pendurada no braço. Imagino que assim o foi, porque quando se fala dela, logo vem à memória a sua bolsinha. Ocasião que fosse, lá estava ela. Pequena, como sua dona. Cheia de pequenos tesouros, assim como os sonhos de nossa personagem.

     Ela entra no mercado e vai fazer suas compras. O primeiro lugar que visita é a feira. Enche as sacolas de produtos: verduras, frutas, os mais variados legumes, que nas mãos de nossa cozinheira viravam manjar digno de deuses. Uma das sacolas estava com verdes uvas. Dessas que à época era m raras. Todos os itens vão à balança, menos as uvas.

     E enquanto enche o carrinho, ela se enche das pequenas uvas verdes, saboreando uma a uma, como se experimentasse o doce em sua vida cheia de contratempos. Tudo sempre fora muito difícil, mas nas suas memórias só havia histórias alegres. Mesmo sendo tristes, recolhia alegrias. Ia pelo mercado, saboreando o sabor pouco experimentado na infância, mas que a maturidade, e uma certa dignidade, lhe permitiam agora comprar. 

     Ia como uma menina travessa, a mesma da época em que recebera seu apelido, em que ajudara a sua mãe com os irmãos, que aprendera o ofício da cozinha com a mesma facilidade com que sorria. Uma menina que saboreia a vida, em pequenos pedaços, enquanto vive o cotidiano de forma leve.

     Quando estava no caixa, Irene ouviu no alto-falante:

     - Senhora do caixa 6, favor comparecer à Gerência!

     Ela olhou para o seu caixa e viu que o número em que estava era o 6. Resolveu abstrair, achando que passaria em brancas nuvens, Quando a voz de locutor torna a dizer:

     - Senhora do caixa 6, favor comparecer à Gerência!

     Resolveu abrir sua bolsinha e fingiu contar moedas, para que ninguém suspeitasse dela. Mais uma vez, ouve:

     - Senhora do caixa 6, favor comparecer à Gerência!

     A moça que operava o caixa, olha para ela e diz:

     - Senhora, é com você que estão falando!

     Fora descoberta. Não teria como fugir. A gerência ficava em uma espécie de mezanino, e subiu as escadas, num tempo que demorava a correr. A cada degrau, pensava uma desculpa para se salvar de ser incriminada pelo simples crime de se deliciar. 

     Chegando à gerência, só consegue dizer:

     - Olha, eu não comi uva nenhuma!

     - Uva? Que uva? A senhora foi sorteada na promoção do Dia das Mães do mercado!!

     No domingo, eu, ainda menina, ouvi pela primeira vez essa história, que se tornou um clássico em minha família. Á mesa, enquanto comemorávamos,os netos e seus filhos, a alegria de ter Irene conosco , ela contava, sorrindo sacudido sua travessura. 

     Ao centro da mesa, servida em uma baixela nova (ganhada em, alguma promoção de algum mercado de algum dia das mães) estava a melhor das sobremesas: um grande e brilhante cacho de doces e deliciosas uvas verdes.


domingo, 17 de maio de 2020

Nasceu mais um domingo

Nasceu mais um domingo
Nesse outono
Nessa intenção
Na solidão
Dos dias que passam
Mas que não são.

Não somos sãos
Nesse mundo de loucos
Que aos poucos cai
Mas logo se ergue
Ouvidos moucos

Seriam mesmo insanos?
Ou apenas homens maus?
Estamos no mesmo barco
Ou em afundadas naus?
Quem não se afoga
É porque nada entendeu.

Nasceu mais um domingo
Enquanto ainda dormia
Tempo de letargia

Leio livros de poesia
E proseio para passar o tempo.
Nessa gaiola de portas abertas
Rotina incerta
Onde estamos presos.

Nasceu mais um domingo
Mas que importa?
Já não podemos pisar à porta
Já não podemos pisar
Já não podemos falar
E de calar vamos levando

Nasceu mais um domingo
Mas que importa?
Se todo dia é o mesmo dia
Se toda hora é incerta agora
Que de nascer já morrem os dias
Sem se importar se segunda ou sexta
Sem se importar se é feira ou fim
Semanas a fio

Nascem domingos e se vão
No vão do tempo

Nasceu mais um domingo...



terça-feira, 28 de janeiro de 2020

Paradoxo

Numa manhã de sol
Eu li seus versos
Mas fazia vazio aqui dentro.

O tempo esvazia as palavras
Mas será que preenche de amor?

Sorvi seu cheiro
Que saiu tão cedo
Névoa que não tenho nem toco.

(Ponho um sorvete para viver esse vazio)

Está oco meu pensamento.
Já apaguei as linhas tantas vezes 
Que gastei
A borracha
Gastei 
A falácia

Me gastei.

Me gosto assim poeta
Mas sempre que me sai um verso
É porque quero gritar.

Meu paradoxo
De te escrever
O que não queria estar dizendo.

Achei meus versos
Daquela primavera
Em que te ofertava flores
Achei minhas dores.

Achei amor no singular
Singelo
Achei você!

E onde estou eu?
No capítulo de ontem
Que deixei de ver
Para te acompanhar
E ficar vazia
Achei a voz que canta.

"Onde estará o meu amor?"

Onde?
A sua voz
A sua tez
A nossa vez...

Achei saudade
De uns versos em que me vi
Nem sei mesmo se estava ali.
Mas eu me li.
Me achei.

Mas me perdi.
Pois sinto falta
De te ter
Falta de te ser
Sempre sua.

terça-feira, 9 de abril de 2019

A morte da artesã

Ela fazia bonecas de pano. Tinha mãos de fada e paciência de bordar olhinhos e bocas e estampar sorrisos nos rostinhos de suas criaturinhas. Uma a uma, espalhava alegria nos cantos da cidade. Ela estampava sorrisos. Não só nas bonecas, mas na vida de todos que a cercavam. Tinha um sorriso sempre vermelho. Tinha um sorriso, sempre. As pessoas da cidade não entendiam de onde tirava suas forças. A moça cuidava do pai doente e nem isso era capaz de empalidecer seu rosto, que era sempre alegre.

De suas mãos e de seu sorriso eram feitas as bonequinhas. Ela não tinha filhos. Não dela, mas levava sempre uma criança ao colo, e como mágica, essas crianças sempre sorriam. Como num conto de fadas, o seu dom era fazer sorrir.

Num dia de aniversário chegou aqui em casa uma de suas bonequinhas. Era uma sereia. Tinha a cauda e os cabelos azuis, numa trança tão bem cuidada, que parecia que as mãos de Deus as tinham trançado, como Ele gosta de fazer com os destinos. As meninas batizaram Ritinha. E andavam com Ritinha pra cima e pra baixo. Ritinha tem olhos fechados, mas traz também um sorriso de quem dorme e sonha com anjos. De tanto brincar, desfizeram-se as tranças de Ritinha.

Era um presságio! As tranças de Deus também estavam se desfazendo e um grande mal atingiu a casa da artesã. As mãos que fizeram Ritinha ficaram impedidas de tecer outras bonecas. Seus olhos cansados ante a imprevisibilidade do mundo foram obrigados a não mais cortar os tecidos e fiar suas pequenas joias. Seu tesouro ficou guardado num quartinho de guardados, assim imagino. Porque quem tece tesouros nunca desiste deles. Os tecidos, as tesouras, os detalhes, os pequenos rostinhos já iniciados descansam até que sua dona possa voltar. Na cidade, as crianças brincam com suas bonequinhas sorridentes, sem saber que o sorriso das mãos de fada estava apagando.


Ritinha, ontem, descansava no baú, quando saímos pro mercado. De repente, a noite caiu antes da hora e o céu se fez preto antes mesmo de se pôr o sol. A menina que tem medo de chuva logo se pôs a dizer: -"A mamãe do céu está arrastando os móveis! Vai ter uma festa no céu!" E a mamãe do céu ajeitou a casa a noite inteira. A arrumação era grande, o que nos fez pensar que a pessoa que chegaria era de muita honra!

Quando a manhã chegou, Ritinha estava isolada num cantinho, afastada dos brinquedos, caidinha assim de lado! Tinha ainda seu sorrisinho. Mas parecia triste. E só então entendemos o porquê. Correu na cidade a notícia da morte da artesã. As bonecas de seu quartinho ficarão por fazer. Seus sorrisos não serão mais estampados. Ela se foi, mas sempre alegre. Se foi deixando lembranças tão boas! Se foi, mas deixa em cada bonequinha seu sorriso. E em cada um que a conheceu a certeza de que era ela a convidada de honra da festa que está tendo no céu!


segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

Tola canção

Outro dia ouvi no rádio
Numa sala qualquer
De um dia quente de janeiro
Que amores são amáveis
Sempre!

Tolas canções
Em que não me amas
Que não me nota
E não anota
Em guardanapo torpe
Um verso de algum cantor.

Vazio está o espelho
Em que me espelho
Mas não me vejo.
Seus olhos cerrados
Dizem mais de mim
Que de você.

E cantarolo
Meu compositor favorito
Mas, que de velho,
Já deve ter se esquecido
Daquele verso
Que vais ouvir
E me escrever.
Em dedicatória de uma manhã
Que de tão linda
Já não será mais fria.

Meu verso guardado
Numa letra que ainda não ouvi
Numa cantiga esquecida no tempo
De uma gaveta que emperrou
E agora guarda amarelas folhas.

Vai ver voaram!
Justo esses, os mais importantes!
Ou se queimaram
Ou se apagaram
Ou nunca foram.

São sempre tristes
Os mais belos versos!
Vai ver é isso!
Que de tristeza não queres dizer
E cala!

E naquela sala
De uma manhã
De frio janeiro
Espero!

Para receber um novo amigo

Já começamos velhos
Já começamos presos
Já começamos tesos
No que se foi e já deixa vago
Nosso projeto.

De amor e de amar
De Marias, de Marielles
De todos aqueles
Que fizeram do luto
A sua luta
Mas que não perderam

Ao que se vai, um breve adeus
Não de esquecimento,
Mais até de livramento.

Ao que chega, uma interrogação.
Para onde ir
Quando as portas
Parecem fechadas?

Quando tudo parece arrancado
Quando tudo parece assassinado
Por uma mão vil e oculta
Que nos segura o pescoço
E nos arranca a voz.

(O brado silencioso em meu peito é latente.)

Arrancaram nosso sorriso
Minaram a nossa força
Ocultaram-lhe a face
Sua urna é lacrada!

Só que as ideias são infalíveis
E às balas sobrevivem,
Ainda que de canhão.
Nossos sonhos não morrem
E nem envelhecem
Assim como já diziam
Na canção de alguma esquina.

Em que viramos e sumimos
Para renascer!
Semente enterrada
É certeza de planta nova.

Já se vai o velho
Para chegada do novo
Que ainda que incerto
É bem-vindo!




quarta-feira, 24 de outubro de 2018

Pra quem detesta poesia

Quem detesta poesia
deve ter nascido
Em um mundo sem cor
Quem detesta poesia
deve ter sido feito
De barro diferente daquele que me criou

Quem detesta poesia nem é gente
Não dessa gente que ri
Não dessa gente que sonha.
Quem detesta poesia não é Pessoa
É um vivente,
É de repente
Alguém que esqueceu.
Que o verso é livre
Assim como a emoção.

Quem detesta poesia é morador
De suas próprias prisões
De seus muros
De um escuro
Pois poesia é luz!

Poesia é voz (e eu grito)
Poesia é vez!
E quem detesta poesia
É porque ainda não fez.

É quem não analisa
É quem não simpatiza
É quem não rivaliza
É sujeito estático
Nesse mundo louco de meu Deus.
É quem não vê os outros como seus
Amigos, irmãos, amantes, errantes.

Quem detesta poesia é quem não vê.
É quem tem olhos, mas não lê.
Não só os versos, mas os avessos.
É quem se avexa!

Quem detesta poesia não tem Bandeira!
Quem detesta poesia passará
E não é passarinho!
Atravanca o caminho
Não vê pedra, vê espinho.
Quem detesta poesia
Atravessa bondes sem pernas
Pretas brancas e amarelas
Quem detesta não poesia
Não sabe essas e nem aquelas

Quem detesta poesia
E ignora os poetas
E ignora os profetas
Nem sabe que o mundo é grande
E não cabe nele as dores de Drummond
Não sabe que essa vida Severina
É feita por tantos galos, que unidos
Tecem as manhãs de João Cabral.

Quem detesta poesia
Perde referências
Perde sua essência!
Pois a poesia
É essa coisa toda de linda!
É essa coisa que não finda
Assim como a esperança!
Quem detesta poesia
Não dança!
Quem detesta poesia
É uma tola criança!

Quem detesta poesia
Nem caberia nesse verso
Mas, ao ouvir tal brado,
Me veio o inverso
E pra dizer que é loucura
Não gostar do verso nosso de cada dia
E me salvar de uma vez
dessa imensa agonia
Só mesmo amando muito
E escrevendo poesia