Rita fazia o
jantar com prazer. Casada de pouco, procurava fazer as coisas para agradar o
marido. O mundo vivia a revolução da virada do ano 2000, mas Rita estava alheia
a tudo isso. Queria apenas viver no mundo que imaginara, na vida que pensava
ser boa, com o homem que escolheu com a razão, com a casa bonita que eles
montaram, com seu trabalho estável, com seus cachorros, sua cozinha e sua sala.
Descascava batatas, como se esse ato fosse o mais nobre de todo o mundo! Era feliz
naquela vida modelada, sem aborrecimentos e sem grandes emoções.
Da cozinha,
ouviu soar na sala uma música da qual gostava. Correu até lá, e viu que na TV passava o clipe, mas preferiu apenas
aumentar o volume, voltar às batatas e cantarolar junto, numa alegria construída:
“Deixa eu dizer que te amo, deixa eu
pensar em você...”. Terminou o jantar com calma, deixou a travessa no
fogão, para levar ao forno quando o marido chegasse. Tomou seu banho, na hora
de sempre, e sentou-se para ver a novela. E ali ficou, observando os
acontecimentos, esperando a chegada do marido.
Era uma moça
jovem, inteligente, que aos 25 anos já era funcionária pública estabilizada.
Fora criada para não errar. Procurava seguir conselhos, fazer as coisas com
perfeição. Sua casa era de uma limpeza, de uma ordem, nada era fora do lugar,
nada era fora de estilo, nada era sem combinar. A cama sempre feita, a roupa
sempre engomada, a comida sempre à mesa no horário. Funcionava como um relógio,
que só para quando acabam as pilhas.
Seu marido, o
Garcia, era um homem sério, responsável, de poucas palavras. Conheceram-se na repartição,
iniciaram uma amizade que acabou virando namoro. Construíram uma vida moldada
em princípios racionais: a esposa perfeita e o marido provedor. Chegava em casa
para jantar, sentava-se à mesa a espera do comida, depois banhava-se para
assistir ao noticiário, já na cama, de pijamas. Funcionava como um relógio, que
só para quando acabam as pilhas.
Naquele dia, ao
chegar em casa, Garcia trouxe um amigo da repartição. Passou pela cozinha, onde
Rita colocava o prato no forno, beijou-lhe a testa e olhou a travessa com ar de
reprovação. Foi para o banho e Rita foi fazer sala para a visita. Quando chegou , reconheceu seu velho amigo da repartição, e sorriu-lhe com saudade. Conversaram
sobre diversos assuntos, todos comuns e do gosto de ambos. Colocaram em dia a
lista de livros e discos que compraram, os shows aos quais assistiram, os sites
que visitaram. Garcia chegou, e o assunto foi se resumindo aos problemas da
repartição e do Botafogo.
Rita pôs os
pratos na mesa, os copos e talheres com perfeição. Trouxe as batatas feitas no
forno e um vinho para acompanhar. Serviu o marido, a visita e depois a si
mesma. Buscou um suco, pois não tomava vinho. Jantaram calados. Garcia, com
pouco gosto. Os outros dois, como num baquete. Após o jantar, enquanto Rita
tirava a mesa e arrumava a cozinha, Garcia mostrava ao amigo sua nova máquina fotográfica,
dessas modernas, que batem fotos sozinhas. Para testar, sentaram-se os três no sofá,
numa pose. O flash estourou em segundos e todos ficaram maravilhados com a nova
invenção do mercado.
Conversaram mais
um pouco, até que Rita retirou-se para dormir, e os homens ficaram ainda na
sala. Já era tarde quando Garcia despediu-se do amigo. Embora amigos,
eram diferentes. Arnaldo era um homem sorridente, de boa conversa, versava
sobre todos os assuntos. Era romântico, ainda que vivesse sozinho. Um cavalheiro
como os de antigamente, que não se fazem mais nos dias de tanta modernidade.
Gostava de música e Literatura, conversava com Rita sobre esses assuntos, e ela
gostava disso.
No outro dia,
pela manhã, o telefone toca cedo. Um parente do chefe da repartição falecera, e
Garcia tinha de viajar para resolver os problemas do enterro. Passaria o dia a
e noite fora de casa. Rita levantou-se, arrumou as malas do marido, recebeu o
beijo na testa e viu o homem sair pela porta. Ligou a TV e o clipe novamente
passava. Dessa vez, ela parou para assistir e enquanto observava, cantarolava: “Amor, I love you/amor, i love you...”. Fez
o almoço para comer sozinha e enquanto almoçava, verificou sua caixa de
e-mails. Muita publicidade, muito spam. Mas no meio deles, um em especial lhe
chamou a atenção. Era um e-mail de Arnaldo, sem título.
Ao abrir, Rita
encontrou na caixa de texto a letra da música que ouvira mais cedo. Ficou sem
entender os motivos daquela mensagem. Mas suspirava.
Beijava a tela do computador com devoção. Era a primeira vez que lhe escreviam
aquelas sentimentalidades. Sentiu um acréscimo de estima por si mesma, e
parecia entrar numa experiência interessante, onde cada palavra conduzia ao êxtase.”
Rita desligou
rapidamente o computador, como se não quisesse mais sentir. Mas as palavras não
saíam de sua mente. Trancou-se no quarto, batendo a porta com furor, com se ali
ficasse escondida do mundo. Mas o mundo estava dentro dela. Não adiantava
fugir, as palavras já causaram estrago suficiente. Onde quer que fosse, levaria
aquele eco em seus ouvidos, como se a canção não pudesse sair da sua cabeça.
Ouviu o telefone. Era Arnaldo. Chamava Rita para um passeio.
Ela ainda
relutou, mas o carro já estava na sua porta. Saiu apressada e caminharam pelo
parque da cidade. Conversaram sobre Machado de Assis, prometeram empréstimos de
livros e CD,’s, sem tocar no assunto do e-mail. Até que, debaixo de uma sombra,
uma serenata esperava Rita com a canção, agora dos dois. Arnaldo, com seu
violão, declarava seu amor a Rita, na letra da música do clipe. A canção
cessou, a banda foi embora, assim como apareceu. De relance, sem ser notada. Arnaldo
abraçou Rita, e ao pôr-do-sol, ali mesmo na grama, os dois tornaram-se um.
Rita se
entregara a um homem como nunca na vida! Toda a formalidade a que estava
acostumada se desfez num momento de gozo. Arnaldo prometera acolhida, mas ela
preferiu expulsá-lo. Não sabia se tinha raiva ou prazer. Condenara-se por ter
sido feliz! Corria feito louca entre as árvores, em lágrimas que ora eram de
prazer, ora de arrependimento. Ao olhar ao seu redor, encontrou apenas a foto
revelada dos três: ela, o marido e aquele que lhe dera um momento de
felicidade. Atrás da foto, a data e uma frase: “Amor, I love you!”. Guardou a
foto em seu bolso e correu novamente em meio às arvores, agora na escuridão calada
do parque fechado. Não podia ir embora.
Sentou-se e
chorou. Pensou na sua vida perfeita aos olhos dos outros, mas vazia de
sentimentos. Pensou na sua casa arrumada, na cama esticada, na louça reluzente
em cima da pia, na comida do fogão. Pensou. Fez o que era programada para
fazer. Rita sabia pensar, tinha ideias, tinha conceitos, mas não sabia amar. Não
sabia ser amada. Não conhecia o romantismo dado a ela por Arnaldo. Estranhava
as surpresas, os galanteios, o inesperado. Racionalizava tudo em sua vida, até
mesmo o amor. Escolhera Garcia. E não conseguia voltar atrás em sua escolha.
Quando acordou,
Rita estava com 60 anos, sentada em uma cadeira, com um bastidor de bordado na
mão e a foto do passado em outra. Enfeitava uma mesinha de sua sala. A casa
ainda brilhava, como se ninguém vivesse nela. Em outra poltrona estava Garcia,
lendo um livro, alheio à esposa sentada a poucos metros. Virou a página, viu um
retrato. Um retrato antigo, do dia em que viajara para resolver um enterro. Um dia
de tantos anos atrás. Olhou a moça do retrato e sorriu. Permaneceu ali, inerte, em sua leitura.
Rita levantou-se
da cadeira, colocou a foto em seu lugar, deixou o bordado na poltrona e foi
fazer o jantar. Beijou o marido na testa e pôs-se a descascar batatas. Descascava batatas, como
se esse ato fosse o mais nobre de todo o mundo! Achava que era feliz naquela
vida modelada, sem aborrecimentos e sem grandes emoções. Funcionava como um relógio,
que só para quando acabam as pilhas. Pensou em Arnaldo, colocou a mesa,
sentou-se em silêncio e jantou com o marido, que olhava a comida com pouco
gosto. Rita estava num banquete. Só queria dormir e acordar no outro dia com o
toque do telefone.