terça-feira, 9 de abril de 2019

A morte da artesã

Ela fazia bonecas de pano. Tinha mãos de fada e paciência de bordar olhinhos e bocas e estampar sorrisos nos rostinhos de suas criaturinhas. Uma a uma, espalhava alegria nos cantos da cidade. Ela estampava sorrisos. Não só nas bonecas, mas na vida de todos que a cercavam. Tinha um sorriso sempre vermelho. Tinha um sorriso, sempre. As pessoas da cidade não entendiam de onde tirava suas forças. A moça cuidava do pai doente e nem isso era capaz de empalidecer seu rosto, que era sempre alegre.

De suas mãos e de seu sorriso eram feitas as bonequinhas. Ela não tinha filhos. Não dela, mas levava sempre uma criança ao colo, e como mágica, essas crianças sempre sorriam. Como num conto de fadas, o seu dom era fazer sorrir.

Num dia de aniversário chegou aqui em casa uma de suas bonequinhas. Era uma sereia. Tinha a cauda e os cabelos azuis, numa trança tão bem cuidada, que parecia que as mãos de Deus as tinham trançado, como Ele gosta de fazer com os destinos. As meninas batizaram Ritinha. E andavam com Ritinha pra cima e pra baixo. Ritinha tem olhos fechados, mas traz também um sorriso de quem dorme e sonha com anjos. De tanto brincar, desfizeram-se as tranças de Ritinha.

Era um presságio! As tranças de Deus também estavam se desfazendo e um grande mal atingiu a casa da artesã. As mãos que fizeram Ritinha ficaram impedidas de tecer outras bonecas. Seus olhos cansados ante a imprevisibilidade do mundo foram obrigados a não mais cortar os tecidos e fiar suas pequenas joias. Seu tesouro ficou guardado num quartinho de guardados, assim imagino. Porque quem tece tesouros nunca desiste deles. Os tecidos, as tesouras, os detalhes, os pequenos rostinhos já iniciados descansam até que sua dona possa voltar. Na cidade, as crianças brincam com suas bonequinhas sorridentes, sem saber que o sorriso das mãos de fada estava apagando.


Ritinha, ontem, descansava no baú, quando saímos pro mercado. De repente, a noite caiu antes da hora e o céu se fez preto antes mesmo de se pôr o sol. A menina que tem medo de chuva logo se pôs a dizer: -"A mamãe do céu está arrastando os móveis! Vai ter uma festa no céu!" E a mamãe do céu ajeitou a casa a noite inteira. A arrumação era grande, o que nos fez pensar que a pessoa que chegaria era de muita honra!

Quando a manhã chegou, Ritinha estava isolada num cantinho, afastada dos brinquedos, caidinha assim de lado! Tinha ainda seu sorrisinho. Mas parecia triste. E só então entendemos o porquê. Correu na cidade a notícia da morte da artesã. As bonecas de seu quartinho ficarão por fazer. Seus sorrisos não serão mais estampados. Ela se foi, mas sempre alegre. Se foi deixando lembranças tão boas! Se foi, mas deixa em cada bonequinha seu sorriso. E em cada um que a conheceu a certeza de que era ela a convidada de honra da festa que está tendo no céu!


segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

Tola canção

Outro dia ouvi no rádio
Numa sala qualquer
De um dia quente de janeiro
Que amores são amáveis
Sempre!

Tolas canções
Em que não me amas
Que não me nota
E não anota
Em guardanapo torpe
Um verso de algum cantor.

Vazio está o espelho
Em que me espelho
Mas não me vejo.
Seus olhos cerrados
Dizem mais de mim
Que de você.

E cantarolo
Meu compositor favorito
Mas, que de velho,
Já deve ter se esquecido
Daquele verso
Que vais ouvir
E me escrever.
Em dedicatória de uma manhã
Que de tão linda
Já não será mais fria.

Meu verso guardado
Numa letra que ainda não ouvi
Numa cantiga esquecida no tempo
De uma gaveta que emperrou
E agora guarda amarelas folhas.

Vai ver voaram!
Justo esses, os mais importantes!
Ou se queimaram
Ou se apagaram
Ou nunca foram.

São sempre tristes
Os mais belos versos!
Vai ver é isso!
Que de tristeza não queres dizer
E cala!

E naquela sala
De uma manhã
De frio janeiro
Espero!

Para receber um novo amigo

Já começamos velhos
Já começamos presos
Já começamos tesos
No que se foi e já deixa vago
Nosso projeto.

De amor e de amar
De Marias, de Marielles
De todos aqueles
Que fizeram do luto
A sua luta
Mas que não perderam

Ao que se vai, um breve adeus
Não de esquecimento,
Mais até de livramento.

Ao que chega, uma interrogação.
Para onde ir
Quando as portas
Parecem fechadas?

Quando tudo parece arrancado
Quando tudo parece assassinado
Por uma mão vil e oculta
Que nos segura o pescoço
E nos arranca a voz.

(O brado silencioso em meu peito é latente.)

Arrancaram nosso sorriso
Minaram a nossa força
Ocultaram-lhe a face
Sua urna é lacrada!

Só que as ideias são infalíveis
E às balas sobrevivem,
Ainda que de canhão.
Nossos sonhos não morrem
E nem envelhecem
Assim como já diziam
Na canção de alguma esquina.

Em que viramos e sumimos
Para renascer!
Semente enterrada
É certeza de planta nova.

Já se vai o velho
Para chegada do novo
Que ainda que incerto
É bem-vindo!