Ainda era cedo. Mal começara a conhecer a vida. Tinha 18 anos, muitos sonhos, desejos, projetos e vontade de sair, de buscar, de ir além. Sua mãe era professora e seu pai fazia bicos para ajudar com alguma despesa para casa. Mas as despesas que fazia nos bares da vida era sempre maior e levava tudo do pouco que conseguia. Sobrava para mãe, então, o prover da casa. Era uma mulher dura, calejada pelo tempo, com marcas severas que a vida deixou, tinha um ar pesado, uma obrigação, um porte militar, que parecia uma espécie de defesa. Enquanto o pai tinha um ar mais solto, um jeito despojado de ver a vida, de consumir arte, de criar, de um porte leve, por vezes irresponsável. A menina não entendia ainda como estavam juntos aquele tempo todo, com toda essa incongruência, essa contradição e esse jeito totalmente díspares de enxergar a vida.
A adolescência a marcara de forma especial. Estava em cima de um muro, sem saber para que lado pender: o rigor, o dinheiro e a razão ou a loucura, a criatividade e o desprendimento. Procurava um ponto de equilíbrio, mas ele nunca vinha. Tinha um jeito diferente de ser, era passional ao extremo, não conseguia racionalizar nem mesmo uma equação matemática. Preferia as matérias subjetivas, o particular no lugar do universal. Lia livros que seus colegas sequer imaginavam ter nas mãos, buscava músicas novas, sons diferentes. Mas também gostava da cultura de massa, do que era comum, dos problemas sobre matrizes e determinantes. Era realmente uma pessoa de muitos lados, muitas faces, muitas possibilidades.
Preferiu, então, sair do muro e cair na vida. Anunciou (com a licença da rima), a hora da partida. Não sabia que rumo ia tomar, mas tinha certeza de que ali não era mais lugar para sua condição ambígua, seu desejo de ganhar o mundo, de ir além do que os limites a colocavam. A mãe, com seu ar severo, jogou na cara todo o sacrifício que fizera esse tempo todo, lembrou cada centavo que investiu em sua educação, cada hora de trabalho que suou em prol de seu bem estar. Seu pai, com sua insanidade latente, nada disse. Não lhe lembrou dos passeios, dos álbuns de figurinhas, dos discos de vinil, da rotina de jogar o cobertor sobre a menina, de pegar seu garfo favorito. Apenas lhe disse uma frase, que a princípio não teve sentido, mas adquirira um certo tom profético:
- "Preste atenção! O mundo é um moinho!"
Ela apenas sorriu, como sempre fazia dele, ignorou a rabugice da mãe e foi para vida. Era bonita, com os cabelos longos e lisos, um sorriso bem feito por aparelhos ortodônticos, um perfil esguio e de aspecto saudável. A princípio foi fácil. Onde chegava, despertava o interesse das pessoas, conseguira um bom emprego, que lhe valia o sustento. Mas em pouco tempo não seria mais o que era. Sua necessidade de dinheiro a aproximaram do estilo de vida da mãe, e afastaram do jeito desprendido de levar a vida, e tudo agora virara obrigação. Tinha que dar conta da casa, das contas, da limpeza, da comida e não sobrava tempo para ler seus livros, ouvir suas músicas. Tornou-se uma pessoa entediada, sem graça, sem vida. Não sabia mais quem era, onde estava sua identidade, quais eram os seus gostos e seus desejos.
Foi quando enlouqueceu! Não sabia mais sustentar sua vida de brinquedo,de um ar que não era dela, e decidiu ser livre. Vivia nos botecos da cidade, à base de cachaça pura e petiscos gordurosos. Já não era mais esguia e seus dentes começaram a trazer as marcas do desleixo. Em cada esquina, caía um pouco a sua vida. Em cada uma delas, achava um "amor de Saquarema", tão duradouro quanto o valor que se dispunham a pagar. Vieram muitos homens, de todos os jeitos e raças, de diversos credos e opções políticas. Eram vários, mas tinham em comum a capacidade de fazê-la cega de amor, de desejo, pois já não distinguia o que era certo ou errado. Era como uma fêmea no cio, um animal movido à emoção e instinto. De cada um deles, herdara apenas o cinismo.
Era outra mulher! Não tinha mais os sonhos da infância. Talvez nem tivesse sonhos. Já não conseguia mais distinguir o que era sonho e realidade. Vivia num mundo onírico, via figuras invisíveis, conversava com seus poetas e compositores favoritos, como se eles ali diante dela estivessem. Já não tinha mais casa, não tinha bens, não tinha nada. Nem mesmo a sua beleza e seu sorriso, sua inteligência e sua razão. Já não lia mais, não ouvia músicas, vivia nos becos, nos bares, na rua, no relento.
Em um sábado qualquer, estava à porta de um boteco quando o dono do mesmo ligou sua vitrola. Ela parou ali, numa tentativa de lembrar-se de quem tinha sido, do que era e pra onde iria. A agulha ia passando sobre o disco em movimento, quando fez soar a frase de seu pai, numa música da qual ela já havia esquecido. Num momento de lucidez, lembrou-se de sua casa, de sua mãe e seu pai, do jeito que herdara de cada um e que agora havia desaparecido. Ela era um monte de nada cheio de lembranças. Lembrou-se da sua mãe, de tudo de material que ela havia lhe provido, da sua casa, sua cama, sua estante de livros e seu guarda-roupas. Lembrou-se de seu pai, ao violão, tocando aquela canção de maneira que a fazia rir, pois quando errava alguma nota, repetia insistentemente a frase, como um disco riscado. Lembrou-se das escolhas que fizera, do mundo que encontrara, que destruiu seus sonhos e reduziu suas ilusões.
Quando saiu de casa, queria apenas seu lugar na vida, queria apenas um jeito de ser diferente de sua mãe, e conseguir sorrir das situações da vida, descontrair um pouco, mostrar ao mundo sua gargalhada. Só queria apenas um jeito de ser diferente de seu pai, de ter um pouco mais de responsabilidade, de capacidade de pensar, de poupar, de gerir. Queria ser um misto de razão e emoção. Queria ser em cima do muro pro resto da vida, descendo para o lado que necessitasse de vez em quando. Queria equilibrar o diabo e o anjo de sua consciência. Mas não sabia fazer escolhas. Tinha o dedo podre! Na hora de ser racional, entregava-se às paixões. Na hora de emocionar-se, endurecia feito gelo.
Tentou fazer um caminho de retorno. Conseguiu um novo emprego, com baixos proventos, suficientes para lhe pagar o aluguel de um quartinho de pensão. Quando deu por si, o tempo tinha passado sem que ao menos tivesse cursado uma faculdade, sem que ao menos tivesse aprendido a tocar na noite e ganhar algum dinheiro com isso. Não tinha sido nada, não tinha construído nada, não tinha amado o suficiente, não tinha prendido ninguém. Percebeu como fora egoísta consigo mesma. Estava se refazendo, sua pele estava limpa novamente, seus dentes foram tratados pelo patrão, seus cabelos eram vivos novamente. Sua razão recobrara-se, e quando viu, estava à beira de um abismo. Abismo que cavara com seus pés!