Por algumas vezes na minha vida, me deparei com o livro "Cem anos de solidão" nas mãos para ler e não o fiz. E agora, depois de tantos desencontros, acabei me enredando nessa empreitada, que, para mim, não teve nada de difícil, mas sim, foi um trabalho prazeroso e mágico. Comecei a história numa terça-feira de feriado, em que as circunstâncias me permitiram um momento de isolamento e silêncio, e cada pausa foi marcada por um clips infantil que fixara a página a ser relida. Já de cara percebi que aquele livro me marcaria para sempre, e a vontade de marcar cada passagem foi enorme! Mas o livro não era meu. Peguei uma agenda velha (era o ser "escrevível" mais perto) e comecei a anotar ali meus trechos favoritos, minhas observações sobre cada personagem, as frases mais interessantes. Por conselho, resolvi traçar a árvore genealógica dos Buendía. Peguei uma no google, e pintei com marca textos, conforme no site: de verde, os da estirpe e de laranja, os agregados. Troquei o clips pela folha pintada, e embarquei no mundo mágico de Macondo.
Uma vez, na época da faculdade, quando tive, como muitas outras vezes, com o livro de capa dura azul e folhas amareladas para ler, uma amiga me disse que seu pai lhe dissera que ele mesmo, quando jovem, lia o livro, arrancando cada página lida e jogando-a fora, pois para ele esse era um livro para ser lido apenas uma vez na vida. Concordo plenamente! Não fui eu mesma arrancando as páginas, pois depois haveria de restituí-lo ao verdadeiro dono, mas para esse livro não há releituras ou retificações. Não há como esquecer cada palavra, cada cena, cada figura que por ali desfila, num enredo de cem anos. Tudo é impressionante e mágico nessa história de família, que se identifica com qualquer história de família. Sem o olhar da minha formação em Letras e sem pensar em fatos históricos, mergulhei nela, como se ali visse meus antepassados, meus contemporâneos e meus descendentes. Não é preciso ler de novo esse enredo, pois ele é recontado todos os dias. Além de ser simplesmente INESQUECÍVEL!
E, durante oito dias, mergulhei na solidão mais perfeita desse mundo, que é estar só e ao mesmo tempo acompanhada, peguei meu bilhete de ida e atravessei com José Arcadio e Úrsula, à cidade de espelhos, fundada pelo casal e que estava fadada à delícias e dores. E ali fui vivendo, como se o DNA Buendía corresse em minhas veias, vendo ali os tipos típicos com os quais vivi meus trinta anos. A figura de Melquíades, com suas mãos de pardal, sua delirante volta ao mundo e sua escrita profética; o patriarca com sua alquimia; o Coronel Aureliano e suas trinta e duas derrotas; Amaranta e seu ódio revestido de amor, ou amor revestido de ódio; Rebeca, a portadora da peste da insônia, com sua deliciosa mania de comer cal; Arcádio, o primeiro ser que nasceu em Macondo; a sucessão de Arcadios e Aurelianos, como se a vida estivesse sempre em elipse, e todos realmente vivessem refletidos em espelhos.
Com maestria, Gabriel García Marquéz, vai levando-nos à cenas impressionantes, à delírios deliciosos, a uma emoção latente, num misto de emoção e tristeza. Nesses oito dias, de minha própria solidão, meu coração foi arrebatado pela vontade de viver cada uma daquelas cenas mágicas que ali se apresentavam: o cinto de castidade de Úrsula, a tala negra de Amaranta, a paixão militar de Aureliano, as tatuagens de José Arcadio, a subida aos céus de Remédios, a chegada da peste da insônia, o trem amarelo portador das mudanças, os fantasmas que rondavam a casa, as borboletas amarelas, a fertilidade sem filhos de Petra Cortes, enfim, a cada página, desfilava um mundo onírico e real, beirando não apenas às antíteses de loucura e sanidade, céu e inferno, dia e noite, prosperidade e decadência, mas ao paradoxo de sonhar acordado ou acordar sonhando.
E nesse mundo mágico, de tantas figuras semelhantes e distintas, uma em especial roubou meu coração: Úrsula. A matriarca, que fugira de sua cidade com seu primo para formar um novo mundo, é, com certeza, uma das personagens mais sensacionais que já li. Em algum momento da narrativa, a família é descrita como o "sistema planetário de Úrsula." Marquei com mais ênfase essa frase e com certeza, nessa história de desatinos, ela era o centro. Pioneira, empreendedora, com seu cinto de castidade, seu senso de realidade, sua sanidade em meio àquele mar de doces loucos, sua impressionante visão, apesar da cegueira, fazem dela o eixo fundamental dessa história. Sua presença permeia praticamente toda a saga da família e é ela quem segura, quem luta, quem levanta, quem consola, quem percebe, como se fosse a única diferente em seu meio. Seus pensamentos, suas colocações, suas percepção são fantásticas! A mulher que tinha um escorpião no coração chagado, foi a única a perceber que o tempo parecia dar voltas e a história sempre se repetia.
Tão grande era essa força da presença de Úrsula, que ao meu ver, não foi a chuva que deflagrou a derrocada de Macondo, mas sim a morte da matriarca e a sua capacidade de reconstrução, de erguida daquele povo, daquela casa e daquela família. Sem Úrsula, acabava também a lucidez, a energia motriz, como se o sol tivesse acabado e a sobrevivência depois disso fosse durar realmente muito pouco. Essa figura da força feminina me foi inspiradora. Dentro de mim, cada página lida foi arrancada, cada palavra foi gravada na minha alma, e a figura dessa mulher que chorou ao saber que, um dia, fora boneca nas mãos das crianças, que viu seu marido definhar embaixo de uma amendoeira, que soube, acima de tudo, amar, ganhou um espaço que nunca vai se apagar. A chama de Úrsula vai permanecer sempre acesa.
A estirpe Buendía, cujo último representante tinha o rabo de porco tão temido por Úrsula, estava fadada a cem anos de solidão, conforme registrou em sânscrito o cigano, conforme decifrou Aureliano Babilônia, e não teve "uma segunda oportunidade sobre a terra". Não com esses nomes e essas pessoas. Mas, outras estirpes estão por aí, desfilando seus destinos, suas histórias, suas mazelas e suas alegrias, seus loucos e seus aristocratas, suas qualidades e seus defeitos. Aqueles se foram na poeira de Macondo. Mas continuam peregrinando como fantasmas. São "Ramos", "Pimenta", "Silva", "García". Somos todos nós, condenados à uma deliciosa e inevitável vida de anos de solidão.