quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Oito dias de solidão ou O sistema planetário de Úrsula

Por algumas vezes na minha vida, me deparei com o livro "Cem anos de solidão" nas mãos para ler e não o fiz. E agora, depois de tantos desencontros, acabei me enredando nessa empreitada, que, para mim, não teve nada de difícil, mas sim, foi um trabalho prazeroso e mágico. Comecei a história numa terça-feira de feriado, em que as circunstâncias me permitiram um momento de isolamento e silêncio, e cada pausa foi marcada por um clips infantil que fixara a página a ser relida. Já de cara percebi que aquele livro me marcaria para sempre, e a vontade de marcar cada passagem foi enorme! Mas o livro não era meu. Peguei uma agenda velha (era o ser "escrevível" mais perto) e comecei a anotar ali meus trechos favoritos, minhas observações sobre cada personagem, as frases mais interessantes. Por conselho, resolvi traçar a árvore genealógica dos Buendía. Peguei uma no google, e pintei com marca textos, conforme no site: de verde, os da estirpe e de laranja, os agregados. Troquei o clips pela folha pintada, e embarquei no mundo mágico de Macondo.

Uma vez, na época da faculdade, quando tive, como muitas outras vezes, com o livro de capa dura azul e folhas amareladas para ler, uma amiga me disse que seu pai lhe dissera que ele mesmo, quando jovem, lia o livro, arrancando cada página lida e jogando-a fora, pois para ele esse era um livro para ser lido apenas uma vez na vida. Concordo plenamente! Não fui eu mesma arrancando as páginas, pois depois haveria de restituí-lo ao verdadeiro dono, mas para esse livro não há releituras ou retificações. Não há como esquecer cada palavra, cada cena, cada figura que por ali desfila, num enredo de cem anos. Tudo é impressionante e mágico nessa história de família, que se identifica com qualquer história de família. Sem o olhar da minha formação em Letras e sem pensar em fatos históricos, mergulhei nela, como se ali visse meus antepassados, meus contemporâneos e meus descendentes. Não é preciso ler de novo esse enredo, pois ele é recontado todos os dias. Além de ser simplesmente INESQUECÍVEL!

E, durante oito dias, mergulhei na solidão mais perfeita desse mundo, que é estar só e ao mesmo tempo acompanhada, peguei meu bilhete de ida e atravessei com José Arcadio e Úrsula, à cidade de espelhos, fundada pelo casal e que estava fadada à delícias e dores. E ali fui vivendo, como se o DNA Buendía corresse em minhas veias, vendo ali os tipos típicos com os quais vivi meus trinta anos. A figura de Melquíades, com suas mãos de pardal, sua delirante volta ao mundo e sua escrita profética; o patriarca com sua alquimia; o Coronel Aureliano e suas trinta e duas derrotas; Amaranta e seu ódio revestido de amor, ou amor revestido de ódio; Rebeca, a portadora da peste da insônia, com sua deliciosa mania de comer cal; Arcádio, o primeiro ser que nasceu em Macondo; a sucessão de Arcadios e Aurelianos, como se a vida estivesse sempre em elipse, e todos realmente vivessem refletidos em espelhos.

Com maestria, Gabriel García Marquéz, vai levando-nos à cenas impressionantes, à delírios deliciosos, a uma emoção latente, num misto de emoção e tristeza. Nesses oito dias, de minha própria solidão, meu  coração foi arrebatado pela vontade de viver cada uma daquelas cenas mágicas que ali se apresentavam: o cinto de castidade de Úrsula, a tala negra de Amaranta, a paixão militar de Aureliano, as tatuagens de José Arcadio,  a subida aos céus de Remédios, a chegada da peste da insônia, o trem amarelo portador das mudanças, os fantasmas que rondavam a casa, as borboletas amarelas, a fertilidade sem filhos de Petra Cortes, enfim, a cada página, desfilava um mundo onírico e real, beirando não apenas às antíteses de loucura e sanidade, céu e inferno, dia e noite, prosperidade e decadência, mas ao paradoxo de sonhar acordado ou acordar sonhando. 

E nesse mundo mágico, de tantas figuras semelhantes e distintas, uma em especial roubou meu coração: Úrsula. A matriarca, que fugira de sua cidade com seu primo para formar um novo mundo, é, com certeza, uma das personagens mais sensacionais que já li. Em algum momento da narrativa, a família é descrita como o "sistema planetário de Úrsula." Marquei com mais ênfase essa frase e com certeza, nessa história de desatinos, ela era o centro. Pioneira, empreendedora, com seu cinto de castidade, seu senso de realidade, sua sanidade em meio àquele mar de doces loucos, sua impressionante visão, apesar da cegueira, fazem dela o eixo fundamental dessa história. Sua presença permeia praticamente toda a saga da família e é ela quem segura, quem luta, quem levanta, quem consola, quem percebe, como se fosse a única diferente em seu meio. Seus pensamentos, suas colocações, suas percepção são fantásticas! A mulher que tinha um escorpião no coração chagado, foi a única a perceber que o tempo parecia dar voltas e a história sempre se repetia.

Tão grande era essa força da presença de Úrsula, que ao meu ver, não foi a chuva que deflagrou a derrocada de Macondo, mas sim a morte da matriarca e a sua capacidade de reconstrução, de erguida daquele povo, daquela casa e daquela família. Sem Úrsula, acabava também a lucidez, a energia motriz, como se o sol tivesse acabado e a sobrevivência depois disso fosse durar realmente muito pouco. Essa figura da força feminina me foi inspiradora. Dentro de mim,  cada página lida foi arrancada, cada palavra foi gravada na minha alma, e a figura dessa mulher que chorou ao saber que, um dia, fora boneca nas mãos das crianças, que viu seu marido definhar embaixo de uma amendoeira, que soube, acima de tudo, amar, ganhou um espaço que nunca vai se apagar. A chama de Úrsula vai permanecer sempre acesa.

A estirpe Buendía, cujo último representante tinha o rabo de porco tão temido por Úrsula, estava fadada a cem anos de solidão, conforme registrou em sânscrito o cigano, conforme decifrou Aureliano Babilônia, e não teve "uma segunda oportunidade sobre a terra". Não com esses nomes e essas pessoas. Mas, outras estirpes estão por aí, desfilando seus destinos, suas histórias, suas mazelas e suas alegrias, seus loucos e seus aristocratas, suas qualidades e seus defeitos. Aqueles se foram na poeira de Macondo. Mas continuam peregrinando como fantasmas. São "Ramos", "Pimenta", "Silva", "García". Somos todos nós, condenados à uma deliciosa e inevitável vida de anos de solidão.

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Olhos de ressaca

Estava vendo alguns catálogos de livros para escolher os paradidáticos para 2013 dos alunos da escola onde trabalho. E de repente, em meio a um mar de livros, surgiu aquele que marcara a minha vida feito brasa em pele. Não pelo fato de ser formada em Letras. Antes ainda, já tinha me tomado por essa força que emana do livro. Cheirei o exemplar, como sempre faço com livros novos, para sentir novamente a mesma maravilhosa sensação. E comecei a folhear, olhando as páginas à revelia, até que me surgiu esse trecho:

“Retórica dos namorados, dá-me uma comparação exata e poética para dizer o que foram aqueles
olhos de Capitu. Não me acode imagem capaz de dizer, sem quebra da dignidade do estilo, o que eles 
foram e me fizeram. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá idéia daquela feição nova. 
Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga 
que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes 
vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros; mas tão depressa buscava as 
pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e 
tragar-me. Quantos minutos gastamos naquele jogo? Só os relógios do céu terão marcado esse 
tempo infinito e breve. A eternidade tem as suas pêndulas; nem por não acabar nunca deixa de 
querer saber a duração das felicidades e dos suplícios.” (Dom Casmurro, Machado de Assis)

O que esse livro representa pra mim é mais que o fato de ser uma grande obra da Literatura Brasileira. "Dom Casmurro" são os olhos ressaca, que me arrastam para dentro. E por quê? Por causa dela: a cigana oblíqua e dissimulada. Capitolina, aquela que de dissimulada, ao meu ver, não tinha nada! Betinho que era fraco, ingênuo e mimado. Capitu era o que era! Tinha uma personalidade forte, sabia o que queria da vida, mas não dissimulava. Era mais inteligente que Bento, mais livre que ele. Ela é um capítulo à parte nessa narrativa, que nos mostra uma mulher descrita por um narrador velho, amargurado e rancoroso da vida.

Bentinho aceitava qualquer prerrogativa que lhe impunham, pois não sabia pensar sozinho.Fora José Dias quem o alertara, numa conversa que ouvia escondido, sobre seu fascínio. Vivia numa severa obediência à Dona Glória, o que o tornou um ser manipulável, passivo, assistente da vida e não agente. E ao encarar os olhos da ressaca, permitiu-se entrar nela, pois somente sabia seguir. E Capitu tinha sim seus encantos. Ela era cheia, intensa. Era a cigana e, com sua dança, ia envolvendo Bentinho no seu jogo. Não por interesses outros, mas por gostar dele. 

Mas a narrativa do já casmurro, infeliz e solitário, que não tinha mais àquela época da vida quem o conduzisse, nos leva a acreditar em uma senhora leviana, que o traíra com seu melhor amigo. A visão realista da época, com seu olhar cientificista, não soube questionar Bento. Colocaram Capitu no banco dos réus. A traição aconteceu! Ele assim o disse. E não há o outro lado da história para pôr essa verdade em prova. Só que o tempo mostrou que em "Dom Casmurro" não pode haver verdade absoluta justamente por isso. O narrador em primeira pessoa conta apenas o seu lado da história.

E quem é esse narrador? Alguém que a todo momento evidencia não se recordar com clareza os fatos do passado. Um homem dependente e obcecado, que tenta reconstruir seu passado copiando a antiga casa, numa tentativa de resgatar o que nunca fora. Um homem que fora um menino frágil, que tinha ciúmes da amiga até mesmo com um vendedor que passava. Um homem com o coração chagado por uma mágoa infinita, que, com a maturidade, reconheceu que Capitu era mais mulher do que ele era homem. Um homem com h minúsculo. Que isenção pode haver nos relatos desse Dom?

Capitu tinha sim olhos de ressaca. Trazia Bentinho para ela, sugava-o para dentro daquela beleza, do qual ele não conseguia fugir. Os olhos o atraíram tanto que ele permitiu que fossem seus próprios olhos. Ele só sabia olhar por eles, só sabia se conduzir por essa visão. Na cena acima, Capitu não desvia seus olhos, mas ele se permite buscar outras partes dela. Não encara. Não se mostra. Até que se rende àquele olhar, à dança da cigana, à mulher inteira que ali se desfigura, ainda que menina.

Ao fim do romance, ele questiona se a Capitu adulta já estava na menina da Praia da Glória. Acho que ele acabou se trocando por ela. Ela sempre foi o que era. Mas o que ele não conseguiu enxergar é que o Bentinho de Mata-cavalos e o Dom Casmurro estavam um dentro do outro, "como a fruta dentro da casca". Nunca se permitiu brotar, nunca se permitiu amadurecer. E quando perde seus olhos, não consegue sequer, contar a história da sua vida sozinho! Quis o destino que acabasse se confundindo e nos enganando. "Que a terra lhe seja leve! E vamos à História dos Subúrbios."

terça-feira, 20 de novembro de 2012

Eterno retorno

Pensando no que se foi
Na espera pro que há de vir
Olhando a vida que segue
Só consigo enxergar o outro.

Grande artista,
Impressionista,
Talvez egoísta,
Quiçá realista,
Que eu, com minha vista,
de águia, percebo que dista.
Estrategista.
Talvez não insista
Resposta prevista!
Dos meus pensamentos,protagonista
Do meu amor, antagonista.

Eterno retorno,
Dos sonhos, adorno
Do meu corpo, contorno
Será que há suborno?
Por que nunca acho a resposta?
Questionário,
Em que dia do calendário?
Deixará de ser adversário
Deixará de ser essa rocha
Deixará que nossos olhos se encontrem
Deixará tudo fluir.

Enigma,
é ele.
E eu?
O que sou?



quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Primavera manuscrita

De tanto apanhar, um dia a gente aprende a bater. Cansei de tomar rasteira e ver minha cara esfregada no chão e ainda levantar sorrindo. Chega! Não vou mais permitir que me cortem até sangrar e tomar analgésicos para ver se a dor passa. Cansei de paliativos! Quero soluções. Não vou mais permitir a dor. Não vou dar meu coração, com faca e queijo na mão para despedaçarem. Não vou mais esperar que alguém me traga rosas. Eu mesma vou até lá buscá-las, nem que seja na floricultura. Cansei do raso. Prefiro morrer afogada no mar de minhas lágrimas a ser um sorriso no porta-retrato que vai desbotando com o tempo. Quem não se aprofunda, acaba boiando. Quero "o açoite das palavras rudes, para que eu possa me defender com atitudes." Faço questão de tudo agora: do último gole, do último abraço, do último centavo. Mudei de rumo, mudei de rota, mudei de caminhos. Do salão até minha casa, passo por novas ruas. Quem sabe não me dou com a sorte? Com a "sorte de um amor tranquilo, com sabor de fruta mordida", com a sorte de ouvir aquela cantada de pedreiro que  levanta o astral, com a sorte de encontrar minha loja favorita em liquidação, com a sorte de achar aquele filme que procuro há séculos disponível para ser alugado, e talvez, sem pedir pouco, com a sorte de achar o bilhete premiado da Sena. Os dias passam, e assim a casca vai ficando mais dura. Menos pessoas passam a merecer minha atenção. Menos pedidos passam ser feitos. Menos cobranças, mais sorrisos, mais amigos, mais música para dançar, mais desejos para realizar. Liguei minha geladeira. Me perturbou? Dou gelo. Aprendi a ser inverno, a trovejar, a fazer chover. O outono veio e me desfolharam como a uma árvore. Fui podada, mas o mais importante ficou: as raízes. E agora, a primavera traz novos galhos, dessa vez frondosos, e lindas flores. Quem quiser, abrigue-se em minha sombra. Caso contrário, mando logo um palavrão. Quem estiver disposto, vai ter de mim as flores. Mas quem me perturbar, vai ganhar é meus espinhos. E que venha o verão!

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Bom dia

Acordei com seu cheiro,
feito cravo em minha pele.
Meus instintos de fêmea,
Mar Vermelho que não se abriu
Ondas que varreram as palavras
Promessas que ficaram por cumprir.

Não foi um erro!
Mas merece acerto!
Concerto de notas singelas,
Conserto de gestos e atitudes.
Merece uma nova vaga.
Será que ainda há paga?
Com que borracha se apaga?
Com que caneta se reescreve essa história?

Perguntas que ficarão sem resposta.
"Isso você nunca saberá!"
É tão óbvio, é tão claro,
Não obstante, e não raro
Esse desejo de colocar reparo
naquilo que talvez não volte

Esse meu poema,
esse meu dilema,
essa sessão de cinema,
num filme de comédia ou terror?
Romance, pornografia,
Certeza talvez tardia.
Será que algum dia?
Quando será um bom dia,
de te ter à revelia?
São seis da manhã.
Bom dia!

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Menina da lua

-Moça! Já estamos no ponto final!

Carolina acordou de súbito. Perdera o ponto de descida do ônibus. Queria ir ao centro da cidade, para fazer uns serviços bancários e comprar mantimentos. Saíra de casa apressada, pois já estava em cima da hora. Tivera um dia de cão. A manhã fora cansativa no trabalho. A noite mal dormida, a discussão de dias anteriores, a ideia da demissão, tudo descontrolara a moça. Tomou ônibus perto de sua casa, pôs seu celular para tocar suas canções, pôs o fone do ouvido e acabou cochilando no caminho. Não se preocupara com o grande valor em sua bolsa, com o encher do ônibus. Sentara-se na última cadeira e ficou ali, ouvindo Caetano Veloso. Acordou com o chamado do cobrador.

-Que merda! - gritou Carolina. Desculpe, moço. A culpa não é sua.

Precisava resolver os problema naquele dia e o adiantado da hora não a permitiriam chegar a tempo de pegar o banco ainda aberto. Resolveu então, que voltaria para casa e que no dia seguinte resolveria os seus problemas. Colocou os fones novamente e ficou esperando o próximo ônibus, enquanto observava o movimento de carros e pessoas na Avenida do Contorno. Foi quando se deu conta de que a música que tocava  no momento tinha seu nome. Atentou-se para aquela letra. "O tempo passou na janela, mas Carolina não viu."

Foi então que a moça percebeu sua passiva condição de assistente da vida. Passou todo seu tempo limitando-se a assistir aos outros, a buscar soluções para os outros. Largara os estudos para ajudar nas despesas da casa. Sonhava em fazer faculdade de enfermagem, pois cuidar era uma espécie de dom. Embora pobre e pouco letrada, era culta. Varria sozinha os cantos da cidade, em busca de informação, de músicas novas, de gente inteligente. Ia a eventos gratuitos, conversava com os donos das bancas de jornais, que lhe garantiam a leitura diária de todas as informações. Carolina era, sem ser. Não tinha canudo, mas tinha o mundo!

E tendo o mundo, não tinha nada. Não podia comprar um disco de seu cantor favorito. Não podia ir ao teatro e ao cinema. Não podia comprar um exemplar de "Cem anos de solidão" e ia lendo aos poucos as páginas dessa história,numa banca de jornal, com melancolia e lágrimas nos olhos. Vendia biquínis pela manhã, como num trabalho  escravo, fizesse chuva ou sol. Mas não conseguia realizar seus sonhos.Não conseguia ser aquilo que sonhava. Nem amar ela sabia. Sua condição de vida não lhe permitia condições de amar.

Mas ela amava. Amava o jovem entregador de jornal da banca em que passava todos os dias para ler seu livro. Olhava-o com um amor ingênuo, de um botão pronto a desabrochar em flor. Sonhava com um beijo como os que via nas novelas de época que amava! Mas não conseguia expressar seus sentimentos. Ele nunca olharia para ela. Ela era apenas uma louca, que sentava no banco e lia duas páginas de um livro por dia. 

A percepção que a música trouxe à Carolina fez com ela ficasse imóvel. Sabia que o tempo passava pela janela da sua vida e ela não via nada. Não tinha passado, não tinha presente e não vislumbrava futuro. Resolveu que não iria mais embora. Precisava reaver o tempo, precisava ser alguém. Resolveu caminhar para pensar numa solução para sua triste vida. Desligou a música e pôs-se em direção contrária à praia.

Quando viu, estava na Passagem. As casas antigas, o cenário bucólico levaram Carolina ao passado. Estava com roupas brancas, longas e de renda. Carregava uma sombrinha e uma pequena bolsa. Usava luvas e um colar de pérolas. Os cabelos presos sustentavam um chapéu. As pessoas que passavam pelas ruas a cumprimentavam e ela sorria. Era alguém. Estava sendo vista. Os tílburis passavam, os cavalheiros com suas esposas, e todos a olhavam e a veneravam, como ela fosse a sua rainha. Continuou a andar, passou pelo Largo de São Benedito e virou para a rua que margeava o canal.

Já não tinha mais as roupas brancas. Vestia-se agora de roxo, num vestido um pouco mais curto, de meia-calça e  sapatos de verniz. O cabelo, no corte estilo Channel, carregava uma faixa colorida. Fumava uma cigarrilha, quando viu o rapaz da banca passar. Tinha uma roupa alinhada. Parecia rico também. Olhou para Carolina e seus olhos a atingiram como um raio. Sorriu para ela , com seu ar de malandro. Ela retribuiu o gesto e parou. Ficou esperando que ele viesse ao seu encontro. Ele apenas a abraçou e lhe deu o beijo de novela que ela tanto sonhara!

Continuou a andar e quando viu já estava próxima ao Forte São Matheus e o sol já havia se posto. Estava de novo com seu jeans surrado e camiseta velha. Ouvia novamente suas músicas. E caminhava em direção às pedras e ao mar. Mas não sentia-se mais vazia. Era a dama antiga cheia de elegância. Era a moça que havia sido beijada. Estava feliz! E o encanto da ondas batendo no mar atraiu a moça. E ela começou a subir,  e a admirar aquele cenário. A lua, radiava no céu, cheia. 

Olhou para a lua com súbita emoção, como se nunca a tivesse visto na vida! Sentia-se cheia. Estava farta de  minguar. Estava farta de oscilar entre o nada e o nunca. Queria manter-se plena, naquela condição nova. Queria crescer, crescer e crescer. Olhou o mar. Estava de ressaca. As ondas batiam forte e espumavam nas pedras. Quando deu por si, a lua estava ali, em meio àquela revolução. Queria ter a lua! Queria ser a lua! Não queria mais aquela vida de miséria. E assim como aquela que enlouqueceu e pôs-se a torre a chorar, Carolina lançou-se na direção da lua. O mar tragou a moça em segundos. Era, agora, apenas parte da ressaca.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

A virgem dos lábios de mel

Quando comecei a escrever meus contos , minha primeira personagem foi Ana, por conta da homônima do conto "Amor", de Clarice Lispector. Depois, veio Rita, em homenagem a Machado. E minha terceira protagonista foi Joana. Por fim, percebi a coincidência com parte de uma música de Ana Carolina, que canta suas mulheres e as denomina Ana, Rita, Joana, Iracema e Carolina. Decidi, então, fechar o ciclo das minhas bambas e criar Iracema e Carolina. As três primeiras vieram ao meu encontro, nítidas, claras, como entidades. Contaram-me suas histórias e as coloquei no papel. E pensei em Iracema. E ela não veio. Não apareceu, não me contou nada.

Percebi então, que ela já me viera, que sua história já fora contada. E que a mim cabem apenas reflexões sobre ela. "Iracema, a virgem dos lábios de mel". A conheci na faculdade. Lendo o romance de Alencar, achei a minha mulher de sentimentos livres e entregues. No folhetim de 1865, Iracema é uma índia com "os cabelos mais negros que a asa da graúna", que guardava o segredo de sua tribo. Representava sua  própria terra natal, com seus encantos e riquezas naturais. E eis que chega Martim, guerreiro branco, e leva a pureza da moça, leva seu amor, leva sua vida. Desse amor, nasce Moacir, o filho da dor.

José de Alencar construiu uma grande alegoria. O romance também é conhecido com Lenda do Ceará, pois Moacir seria o primeiro cearense, símbolo da exploração europeia . Iracema é anagrama de América. E ambas carregam o estigma de exploradas, as belas e puras, que têm o seu ouro saqueado por aquele que vem, instala-se e leva o melhor, sem oferecer nada em troca. E a jovem índia morre  de tristeza, padece por aquele que a sugara por inteira. E deixa como herança um rastro de passividade, de servidão, de escravidão.

Anos mais tarde, Chico Buarque procurou a sua Iracema. Agora, ela voou. Foi para a  América. Não essa, latina, que continua o legado da índia de Alencar, mas para a do Norte, onde o capitalismo selvagem sugere ser o melhor lugar do mundo para as oportunidades. A condição de explorado e explorador agora inverte-se. Em vez de chegar, emigram. Saem do Brasil em busca de melhores condições de vida, mas continuam em sub-empregos, continuam em condições sub-humanas, lavam "chão numa casa de chá", ambicionam, têm saudades, não dão mole para a polícia. Martim continua vivo, agora chama-se dinheiro. Continua a levar nossas Iracemas para a tristeza e continua gerando filhos da dor.

O que poderei eu contar mais a respeito de Iracema? Ela já está aí, pronta para ser lida e ouvida. E quantas Iracemas vamos encontrar? Todos os dias elas andam por aí, trabalham, sustentam suas casas, apanham dos maridos, perecem nessa vida. Carregamos conosco essa essência, esse desejo, essa entrega quando amamos sem medida, quando nos doamos sem buscar nada em troca. Minha heroína está bem representada. A mim, resta calar a minha voz e deixar que ela se conte na voz de quem a soube fazer com maestria! Termino com o link da canção de Chico. E que venha Carolina!




sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Cantiga para Manuella

Hoje acordei cedo e fui fazer uma caminhada à beira-mar. E como esse é um momento propício a reflexões! E num dia onde se lembram os mortos, pensei naqueles nossos que já se foram, e que num momento,  causaram grande tristeza. Mortes repentinas, jovens vidas ceifadas, amigos retirados de nosso convívio. Mas percebi que hoje vivemos um tempo de renovação. A nossa história se perpetua nas novas vidas que estão surgindo, nas nossas lindas crianças, que vão carregar a nossa identidade para frente. 

Decidi então, que a hora é de celebrar a vida! A nossa, dos nossos filhos, amigos e familiares. Daqueles que nos amparam nos momentos difíceis, que nos ajudam, com quem brigamos por motivos fúteis, mas que amamos estar perto. Caso assim não fosse, não estaríamos sempre tão próximos, festejando nossas qualidades e nossos defeitos. 

Pensei então naquela que ainda nem chegou, mas já encheu a nossa vida de alegria, pois um novo milagre está prestes a acontecer mais uma vez para nós. Mais uma para carregar esse DNA porreta, que eu, particularmente, tenho muito orgulho! Talvez, essa renovação que nunca acaba deve ser o que se chama VIDA ETERNA!

Enquanto caminhava, essas palavras me vieram, me tomaram, e assim nasceu a "Cantiga para Manuella".  


Bem-vinda à luz,
Bem-vinda à vida,
Bem-vinda ao sol,
Bem-vinda à família.
Bem-vinda ao amor,
Bem-vinda à alegria!

Que a vida lhe seja leve,
Que os dias lhe sejam suaves,
Que seu sofrimento seja breve,
Que seja firme e tenha coragem.
Que a vida lhe seja bela.
Que a vida seja,

Manuella!

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Respostas

Joana acordou de súbito, com o toque do despertador. Olhou seu celular, desses mais modernos, e viu a hora. Ainda estava cedo para levantar, podia dormir mais um pouco. Deitou-se novamente, mas seus olhos pareciam não querer fechar. Seu coração parecia querer saltar-lhe pela boca. "Que droga", pensou a menina, que não sabia o motivo de tanta ansiedade. Na verdade sabia. Aguardava uma resposta que parecia não vir. Dera-se de forma intensa, mas não obtivera resultado. Não sabia o que pensava o destinatário de todo o seu desejo.


Abria a página da rede social para conferir e nada. A única coisa que aparecia era sua última conversa, suas últimas palavras, sua demonstração de dúvida e nenhuma resposta. Apenas sabia que ele lera sua confissão. Mas permanecia alheio. Ou preferia não responder, ou talvez não tivesse resposta. E isso comia a menina por dentro, como cupins na madeira. Seu coração palpitava, suas mãos tremiam. Aguardava aquela resposta, como quem aguarda o melhor presente de sua vida. E ela não vinha. E ela parecia a "garotinha esperando o ônibus da escola sozinha, cansada, rezando baixo pelos cantos, por ser uma menina má.. Era poeta, mas não aprendera nada sobre o amor.


Era uma jovem ainda, quando perdera seu primeiro namorado. Não sabia como recolher seus cacos do chão. Era imatura e não estava acostumada a perder. Então, como se a vida mostrasse que o tempo vai acalentando os corações, foi conhecendo outras pessoas, olhando novos horizontes, experimentando o novo. Mas seus cacos permaneciam no chão. Inertes. Como se alguém tivesse que catá-los para ela. Não sabia resolver seus problemas de forma simples, assim como fazia com suas provas da faculdade. Era excelente em pensar, a melhor aluna da classe, desempenhava esse papel com maestria. Mas era péssima em amar! Ou pelo menos não sabia como lidar com os sentimentos. Tudo que sentia a arrebatava por completo, tomava conta de seu ser, engolia sua capacidade de seguir em frente. Ansiava por viver logo, fosse a dor ou a felicidade.


Nesse momento de instabilidade, ela o conheceu. Era uma pessoa como Joana, inteligente, mas falho na difícil arte dos sentimentos. Embora mais velho, ainda era inexperiente. Aproximou-se de Joana por conta de afinidades, tornaram-se amigos, saíam juntos. Ela o confidenciara sua vida, seus medos. Ela sentia-se bem ao lado do amigo, que ria com ela, ouvia com ela as músicas das quais gostava, conversava com ela sobre seus livros, como ninguém um dia fizera. Os dois eram como um. Mas ao mesmo tempo eram diferentes. 


Um dia, numa dessas saídas, foram parar num beco, perto da casa de Joana. Ali, os ainda meninos, entregaram-se à paixão. E no outro dia, fizeram novamente o mesmo percurso. Mas Joana era inconstante. Estava perdida, como num labirinto, sem saber que caminho seguir. Estava como um pêndulo, que vai e vem sem parar e nunca escolhe o lado que quer ficar. Naquele momento escolheu não parar. Escolheu balançar para lá e para cá, dar cabeçadas na vida, errar e errar cada vez mais. Ia, vinha, ia novamente, rasgando seu coração com tanta instabilidade. E ele ali, vendo a menina destruir-se sem conseguir ou poder fazer nada.


Quase dez anos passaram. E Joana estava agora em frente ao computador, esperando sua resposta. Nesse tempo, os dois seguiram caminhos diferentes. Perderam-se de si, acharam-se e perderam-se na vida. Mas o tempo que separou os dois, resolveu dar novamente um ao outro. Não eram as mesmas pessoas, não eram mais os meninos daquele beco. Cada um escreveu uma história distinta, e pareciam não reconhecer no outro o amigo de antes. Não sabiam mais quem eram, pois não conversavam mais, não riam mais juntos, não faziam mais brincadeiras, não saíam mais para tomar caipirinha e fazer piadas. Cada um traçou a sua história, longe do outro. 


Mas, ao reencontrá-lo, Joana lembrou-se de seu amigo de antes. Não sabia mais como voltar a ele. O pêndulo agora estava inerte. Imóvel. Não sabia ir, não sabia voltar, não sabia errar, mas também não acertava. Mas veio um vento e sacudiu sua vida. Agora ela já sabia catar seus cacos do chão. E assim o fez.  Não sobrou nada. Foi difícil, mas ela conseguiu juntar tudo rapidamente, como se cata um copo que cai no chão. Com seu amigo ali novamente, vendo a menina reconstruir-se, agora podendo fazer alguma coisa, por mais que pouca. Joana parou para ouvir seus conselhos. Conseguiu filtrá-los e não se sentia mais sozinha. Amadurecera com o passar dos anos e das situações.


E Joana novamente sentiu-se bem ao lado do amigo. E foi voltando àquela sensação boa que a amizade lhe causava, foi voltando àquele homem, foi voltando àquele beco. E chegou ali, como se nunca tivesse saído. A certeza que não tivera naquela hora, agora era clara como água. Seu coração pulsou forte. Lembrou-se daquelas noites, como se elas fossem as noites anteriores. Sentiu tudo que estava preso saltar de dentro de si, tomar conta de seu ser, atingir seu coração e ali ficar, como um cupim na madeira. O sentimento corroía Joana. Achava que não tinha mais tempo a perder. Queria viver de novo aquele sentimento. 


Não queria voltar àquele beco, mas queria explorar novos becos, ruas e vielas. Não estava mais no labirinto. Tinha noção agora de cada passo e sabia aonde queria ir. Apareceram companheiros para essa nova caminhada, mas ela não queria nenhum deles. Queria apenas o que sentia ser seu. Não por direito, não por conveniência, mas que sentia ser seu por seus sentimentos. Joana só queria sentir. Não queria mais pensar, não queria racionalizar o amor. Só queria amar.


Mas aquele que viu Joana entrar no labirinto e perder-se lá dentro talvez tivesse medo. Não queria adentrar novamente no seu labirinto pessoal e não conseguir sair dele. Tinha curiosidade e desejo. Mas oscilava. Tornara-se agora o pêndulo, que fica para lá e para cá, sem saber onde e como parar. Ela não sabia muito mais sobre ele. Nunca conseguira adentrar nos seus sentimentos. Ela era transparente, mas sua visão sobre o outro lado estava turva, encoberta por uma nuvem de fumaça. Não sabia o que o outro sentia e esse insistia em não responder. A angústia tomou conta de Joana.


Resolveu aproximar-se, acertou, errou, evoluiu, involuiu. Mostrou-se toda. Entregou seu ouro ao bandido. Mas permanecia vendo o turvo, o incerto, o falhado, como uma tela Impressionista. Sugestão. Mas nunca a clareza. Joana viu-se em conflito. Queria tanto e não conseguia um retorno objetivo. Apenas possibilidades, hipóteses, talvez. Resolveu insistir. Pediu mais uma vez. E agora não tinha resposta alguma. Não sabia o que pensar, porque nem um tchau tivera como resposta. Nada. Apenas o silêncio.


E agora ela permanecia ali, de frente ao computador esperando a resposta. Talvez já saiba qual seja ela, ainda que não queira, mas aceite. Não podia cobrar nada daquele que uma vez quis lhe dar tudo. Mas ela desejava e não conseguia ser pragmática, pois esse desejo cegava-lhe os olhos e a emoção sequestrava as razões da moça. Ficou esperando, sem saber que a resposta já lhe havia sido dada, dias antes, num poema que o amigo lhe escrevera : "Não tenha pressa da luz, não tenha pressa de nada."